Resenha: A contadora de filmes, de Hernán Rivera Letelier

Cinema é tudo para mim. Foi o que me deu forças para continuar no momento mais difícil da minha vida. É o meu combustível diário, minha paixão, minha profissão*. Sem cinema tenho sintomas de abstinência, e a vida perde um pouco o colorido. Por isso eu leio tudo sobre cinema. Por isso eu li “A contadora de filmes” há muitos anos. Por isso reli o livro para refrescar a memória e me preparar para a estreia da adaptação cinematográfica.

Maria Margarita é a mais nova entre cinco irmãos, todos os outros homens. O pai sofrera um acidente de trabalho nas minas de sal, deixando-o paralisado da cintura para baixo. A mãe abandonara a família quando a desgraça se abateu. O dinheiro era contado, para os bens essenciais e para o bem mais essencial para a mente: uma ida semanal ao cinema. Houve um concurso entre os filhos: quem contasse melhor o filme visto, com mais riqueza de detalhes, ganharia o direito - o dever! Um dever deveras prazeroso - de ir semanalmente ao cinema e voltar para casa para contar o filme para o resto da família. Maria Margarita ganhou o concurso.

O pai e os irmãos só gostavam de filmes. Maria Margarita e a mãe eram enlouquecidas pelo cinema. Depois de se tornar contadora de filmes oficial, ela começa a também fazer seus próprios objetos de cena para ajudar nas dramatizações, que ficam mais completas com canções e trejeitos. Adotou o pseudônimo de “Fada Docine” e suas contações viraram atração no povoado… e daí veio sua desgraça, quando foi chamada para contar um filme para o agiota local.

“A Contadora de Filmes” é o tipo de livro que eu gostaria de ter escrito. Que eu poderia ter escrito. E isso diz muito sobre ele. Eu não escrevo coisas palatáveis. Eu não escrevo fantasias escapistas. A protagonista é uma menina cuja mãe deu à luz seu primeiro filho aos catorze anos, e aos 26 abandonou o esposo e cinco filhos para ser vedete. A protagonista chora a mãe ausente, e se lembra dela como quem vê um filme preto e branco e mudo - meu tipo favorito, vale acrescentar. A vida de Maria Margarita não é um musical escapista, mas a leitura desta vida, que não deixa de ter inúmeros percalços, é leve e fluida, como alguém já disse que também é a leitura dos meus livros.

Maria Margarita faz mais que contar filmes: ela vive os filmes. Eu vivo dos filmes, e procuro também revivê-los quando os conto em minhas críticas. Ela e eu temos sucesso no que fazemos porque todo mundo ama quando alguém conta histórias. Atrevo-me a declarar que contar histórias é um ato fundamental para diferir humanos dos outros animais - e será que os outros animais não têm realmente mecanismos para compartilhar narrativas? E essa narrativa é justamente isso: profundamente humana.

O veredicto: 4 minions!

ÓTIMO!

Frase favorita: “Alguns diziam que eu era tão boa para caracterizar os personagens que, só com o piscar dos olhos, podia passar da expressão de candidez de Branca de Neve à ferocidade do leão da Metro Goldwyn Mayer”. (p. 74-75)


*No primeiro rascunho deste texto, escrito há uns dez anos quando pela primeira vez li este livro, escrevi “minha quase-profissão”. Hoje é profissão. Tudo mudou, menos o poder de emocionar que este livro causa - e a paixão pelo cinema. Que bom.

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