Papel & Película: O Livro da Discórdia (2022)
*A coluna Papel & Película trata de
literatura e cinema através de artigos sobre adaptações de obras literárias
para o audiovisual e também filmes sobre livros. Escrevi a coluna semanalmente
durante alguns anos para o finado site Leia Literatura. Este é um artigo
inédito*
“Quando um escritor nasce numa família, esta família está ferrada” - a frase é mais ou menos assim. Citada no filme por um apresentador de televisão, que diz que Philip Roth a citava, mas era de autoria de outro escritor, não nomeado. Esta frase sem autoria clara é perfeita para descrever um tipo de inspiração comum entre os escritores, mas que pode causar muitos problemas.
Escreva sobre o que você conhece, alguém pode
aconselhar. E conhecemos poucas coisas tão bem quanto a nossa família. Mudando
nomes e gêneros, inventando situações e desmascarando outras ocultas, o
escritor Youssef Salem (Ramzy Bedia) costura a trama de um romance entitulado
“Choque Tóxico”.
Na vida real, Youssef tem duas irmãs e um irmão.
No romance, o personagem também chamado Youssef tem dois irmãos cheios de
falhas de caráter. Na vida real, tudo é mais nuançado. Na ficção, é preto no
branco. A vida real está prestes a ser chacoalhada pelo que foi escrito na
ficção.
Durante mais da metade do filme, Youssef se
embaralha para evitar que seus pais idosos leiam seu livro - e consegue. Mas a
descoberta da obra pelos patriarcas precisa acontecer para chegarmos ao clímax
narrativo, e quando acontece, é um soco no estômago, depois tornado cômico.
Além de Youssef, outra personalidade midiática
do bairro é Rachid (Lyes Salem), participante de um reality show ao estilo de
“No Limite”. Vazio e sem noção, seus músculos são seu ganha-pão e mesmo assim
ele insiste para que Youssef escreva sua biografia. Será com Rachid que o escritor
encontrará a solução para voltar à sua vida medíocre pré-publicação do romance.
A importância de prêmios literários é conhecida
de todo escritor. Eles dão chancela, algum dinheiro ou troféus, e com certeza
reconhecimento. Ganhar um prêmio literário é o sonho de muitos, mas para
Youssef é um pesadelo. Para sua agente, Lise (Noémie Lvovsky), é a coroação do
trabalho duro e motivo para celebrar - até passar do limite.
Muitos temas apenas tocados na superfície
poderiam ter sido melhor explorados no filme, a exemplo da “experiência árabe”
dos anos 1990, da qual Youssef trata em seu romance. Mas este não é um filme
sério, nem um filme que se leva demasiado a sério. É uma sátira do mundo
literário e, como toda sátira, tem sua parcela de verdade, e todo escritor
certamente apreciará “O Livro da Discórdia”, talvez vendo seu modus operandi espelhado
no filme.
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