Papel & Película: O Filho de Mil Homens

 


Há pouco mais de seis meses, tive a oportunidade de assistir ao documentário de média-metragem sobre Antonio Candido “O Avô na Sala de Estar”, feito, como o nome revela, por sua neta. Antes disso já havia visto e amado “Antonio Candido: Anotações Finais”. No mesmo salão, também assistindo ao média, estava o escritor Valter Hugo Mãe - para ser mais precisa, sentado bem à minha frente. Ao final da sessão, fez uma observação pertinente. E assim foi meu primeiro contato com Valter Hugo Mãe.

Meu segundo contato com Valter Hugo Mãe foi vendo a gravação da palestra dele no Flipoços. Depois de dizer, como quem não quer nada nem mesmo se gabar, que lê um livro por dia, o escritor afirmou que quem não lê perde a si mesmo, pois a leitura é “uma musculação do pensamento” já que “o livro é uma escola sempre aberta”. Com seu jeito irreverente e aleatório, conquistou a todos na plateia - e também a mim. Esse foi meu segundo contato com Valter Hugo Mãe.

Até que se aproximou a estreia do filme “O Filho de Mil Homens” na Netflix. É uma adaptação do romance de mesmo nome de Valter, o que alimentou minha vontade de comparar as duas obras. Para José Saramago, ler Valter Hugo Mãe é como “assistir a um novo parto da língua portuguesa”. Será que assistir ao filme também é testemunhar um novo parto do cinema? Vejamos.


Crisóstomo (Rodrigo Santoro) é um homem que chegou aos quarenta anos sem esposa e filhos. Ora, um dia eu chego lá. Na verdade, hoje me encontro mais próxima dos quarenta que dos vinte. Mas isso é uma digressão.

Crisóstomo é um homem que “pensava que quando se sonha tão grande a realidade aprende”. E de tanto sonhar, esse pai sem filho que procurava um filho sem pai, um dia, por obra do destino ou talvez pelo acaso, conhece Camilo (Miguel Martines). A partir deste encontro desenrolam-se outros, com figuras tão diferentes quanto Francisca (Juliana Caldas), Isaura (Rebeca Jamir) e Antonino (Johnny Massaro).


No geral, a adaptação é bastante fiel, com apenas algumas mudanças. Por exemplo: a personagem Maria, a mãe de Isaura que um dia acorda falando com sotaque francês, ganha muito mais destaque no filme que no livro. Talvez seja porque ela é interpretada por Grace Passô, uma grande atriz cujo talento não quiseram desperdiçar.

Outra mudança relevante é que não é mostrada a vida prévia de Mirinha, a menina que Matilde adota. No livro, a mãe da menina se casa com o velho viúvo Gemúndio, num acordo que tem, obviamente, segundas intenções. Mas a noiva morre no dia do casamento, após comer um pedaço de uma galinha gigante que o noivo criava no galinheiro, um animal potencialmente mágico que não devia ter sido morto para o almoço de bodas. Mais um acréscimo do filme é a história pregressa de Crisóstomo.

Alguns podem acusar o filme de breguice. Talvez seja brega Antonino desenhar borboletas, ou mesmo o final tenha um quê de piegas. Mas é um filme feito de pequenos gestos e silêncios que muito dizem sobre nós, que nascemos com linhagens imensas por trás definindo nosso DNA e, não se sabe até que ponto, nossa vida inteira.

“Deve nutrir-se carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade,” diz Valter Hugo Mãe em determinado capítulo de que agora não me recordo. Crisóstomo soube construir uma família de despossuídos e sofredores. Seu livro, e também o filme, é sobre as vidas que se tangenciam e por vezes se cruzam. Porque família é muito mais que laços de sangue, é algo mais forte e profundo.

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