Resenha: Neca, romance em bajubá, de Amara Moira

 


“Só sei que nada sei” - Sócrates

E quanto mais eu sei, sei que não sei de nada. Essa foi a sensação ao ler “Neca, romance em bajubá”. É o tipo de livro que não procuraria por vontade própria, mas que foi escolhido no novo clube de leitura LGBTQ+ no qual entrei. Esses tipos de iniciativas são excelentes para ampliar nossos horizontes literários, e com certeza foi o que aconteceu comigo durante esta leitura.

Confesso que, quando li o subtítulo “romance em bajubá”, do alto da minha ignorância pensei se tratar do lugar onde a história de passava: de preferência, uma paradisíaca praia da Bahia. Estava totalmente errada, mas existe sim exuberância no bajubá, afinal, trata-se de um dialeto da população LGBTQIA+. Além deste dialeto, a protagonista usa palavras do francês e do italiano, devido à sua passagem por estes países, incluindo algumas aportuguesadas para casar com a pronúncia. Escolhi deixar a leitura fluir, sem ficar indo ao dicionário toda vez que encontrava uma palavra ou expressão desconhecida.


“Neca” é um monólogo de uma transexual que trabalha, assim como tantas outras, como prostituta. Ela começa tirando à força do armário Álvares de Azevedo, Mário de Andrade e Mário de Sá Carneiro, bem como imaginando Pedro Álvares Cabral e D. Pedro I de calcinha por baixo das vestes formais.

Passada a introdução surpreendentemente literária, ficamos conhecendo os ossos do “ofício pio antico del mondo”. Em vez de resumi-los aqui, deixo para quem for ler depois o aviso: nossa protagonista, depois dos relatos, diz que é assim, “depois desse filme de horror que, diariamente, a gente é obrigada a assistir”, que se perde a vontade de pertencer à espécie humana!

Conheci Amara Moira quando ela escreveu alguns artigos para o Buzzfeed Brasil, mas não a acompanho de perto, por exemplo, em redes sociais. Em uma busca rápida, descobri que seu nome social foi inspirado na “Odisseia” de Homero, na qual as moiras eram videntes que previam um destino amargo para o herói Ulisses (ou Odisseu). Mas não parece haver muito amargor na trajetória da moça: doutora em teoria literária pela Unicamp, “Neca” é seu segundo livro, sucesso de vendas, e ela tem uma experiência comum a muitos leitores-escritores: como declarou ao Le Monde Diplomatique, encontrou nos livros a acolhida que não teve em outras esferas da vida.

Depois da experiência com “Neca”, mais uma vez encontrei o bajubá no Carnaval, como parte do samba-enredo da escola Paraíso do Tuiuti, cujo enredo era Xica Manicongo, primeira pessoa transexual da História do Brasil. Quase exterminada pela Inquisição após denúncia de um português, Manicongo só escapou da fogueira por ter voltado a se vestir com roupas masculinas.

Para concluir: mais uma vez, escolho não dar nota para a leitura por ela ser tão diferente, de fato desafiadora. Mas vale a pena - nem que for para dizer que aprendi como funciona o Viagra.

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