Resenha: A Pediatra, de Andréa del Fuego

O que leva uma pessoa a decidir fazer o curso de medicina? A resposta romântica da maioria é “poder salvar vidas e cuidar das pessoas”. Alguns são mais práticos e chocam ao confessar que escolheram a carreira pelo dinheiro. Na minha experiência, muitos escolhem a medicina por status. Mas a protagonista do livro “A Pediatra” não se enquadra em nenhuma destas respostas. Ela fez medicina, acredite ou não, por comodidade.

Cecília é pediatra e neonatologista (quem cuida de recém-nascidos) porque seu pai também é médico, e inclusive atende no mesmo prédio que ela, no mesmo andar. Mas o pai é endocrinologista pediatra e lida com as temidas “mães-pâncreas”: as mães de crianças com diabetes, dependentes de insulina. Cecília não quer ter nada a ver com crianças com doenças crônicas, muito menos com suas mães. Por isso, ela atende os pequenos pacientes até por volta dos dois anos de idade, e depois disso “dá um perdido” para que eles procurem outro pediatra.

A vida calma e regrada de Cecília muda quando dois homens surgem. Um afeta sua vida pessoal, o outro a profissional. O primeiro é Celso, seu amante, e o segundo é Jaime, um neonatologista humanizado.

Celso chega num momento em que o casamento de Cecília está ruindo, e ela de fato se separa logo no começo do livro. Sem noção, Celso pede que Cecília esteja presente no nascimento do seu filho, Bruninho. Cecília segue todo o protocolo num parto cheio de violência obstétrica, e ainda ganha uns amassos. Tempos depois, ela reencontra Bruninho e desenvolve uma verdadeira obsessão pelo menino.

Jaime é o pediatra que ameaça a vida profissional de Cecília. De repente, as gestantes pedem que ele esteja no parto delas, e não Cecília. A obstetra com quem Cecília tinha uma parceria também a pretere por Jaime. Possessa com todo este discurso de parto humanizado, Cecília chega a mentir que está grávida para entrar numa aula de ioga e conhecer melhor outra inimiga: a doula.

Doula, violência obstétrica, parto humanizado: todos estes termos e suas definições certamente foram pesquisados a fundo pela autora Andréa Del Fuego. Eu os conheço através de uma pesquisa igualmente profunda sobre eles quando escrevi sobre a trilogia de documentários O Renascimento do Parto. Não é necessário ser um conhecedor de termos obstétricos para seguir em frente com a leitura de “A Pediatra”, mas este conhecimento ajuda na percepção dos detalhes, da mesma forma como ajuda conhecer a região de São Paulo onde a história acontece.

Cecília é uma anti-heroína e também é a narradora do livro. É uma profissional técnica, que segue os protocolos sem exercer a empatia, mas também é uma personagem complexa, em todas as suas relações. Teria sido interessante ver um embate direto entre Cecília e Jaime, mas essa “falta” é compreensível, afinal a própria constituição da personagem a faz evitar confrontos.

Por ser a narradora, vemos tudo e todos sob a óptica de Cecília. Os capítulos são, em sua maioria, compostos de um bloco único de texto, um grande parágrafo no qual se misturam narrações, digressões e diálogos. É nestes grandes parágrafos que Cecília destila seu veneno, imaginando o passado e o presente dos outros, de Jaime, de Camila, esposa de Celso, de Deise, sua empregada.

“A Pediatra” é uma leitura muito fluida e muito rica. Como um ciclo de gestação, a história muda Cecília completamente, mas ela não deixa de ser disfuncional. Ainda bem: nem todos os anti-heróis precisam de redenção.

O veredicto: 4 minions!


ÓTIMO!   

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