Resenha: Vá, Coloque um Vigia, de Harper Lee

 

Durante muito tempo eu tive receio de ler “Vá, Coloque Um Vigia”, porque “O Sol é Para Todos” é um dos meus livros favoritos. Publicado em 2015, apenas um ano antes da morte da autora Harper Lee, “Vá, Coloque Um Vigia” prometia desconstruir algumas coisas - uma reputação em especial, para ser mais exata - que haviam sido construídas em “O Sol é Para Todos” e reforçadas na versão cinematográfica de 1962. Mas foi o Clube do Livro Feito por Elas que me incentivou a enfrentar meu medo e finalmente conferir o livro, e assim eu não me decepcionei sozinha.

Em “Vá, Coloque um Vigia”, encontramos Scout Finch, ou melhor, Jean Louise Finch, como uma moça de 26 anos que, vivendo em Nova York, vai passar um tempo na sua cidade natal de Maycomb. Seu irmão Jem herdou o coração fraco da mãe deles e sucumbiu muito jovem, e seu grande amigo Dill mora em outra cidade. Restam, de rostos conhecidos em Maycomb, Atticus Finch, a tia Alexandra e o tio Jack - a boa e velha Calpúrnia ainda está pelos arredores da cidade, e aparece só brevemente. De novidade, há Henry, jovem advogado, pupilo de Atticus, que corteja Jean Louise.

Uma tarde, Jean Louise passa pelo local onde está acontecendo uma reunião do Conselho de Cidadãos de Bem de Maycomb, do qual fazem parte Atticus e Henry. Ela ouve um discurso terrivelmente racista de um dos membros, e fica horrorizada quando todos os presentes parecem concordar com ele. Ela fica ainda mais enojada após um café da manhã festivo inventado pela tia, onde precisa conviver com velhas conhecidas, já casadas, falando sobre coisas que seus maridos lhes contaram sobre os perigos da miscigenação e o fantasma do comunismo.

Há alguns flashbacks da infância de Jean Louise que são bacanas, apesar de se esticarem demais e não servirem muito para avançar a história no tempo presente. Apesar de “inúteis”, arrisco-me a dizer questão a melhor parte do livro, e foi uma atitude muito certeira ter apenas a infância de Scout em “O Sol é Para Todos”.

Cena do filme "O Sol é Para Todos" (1962)

Sem personagens importantes de “O Sol é Para Todos” e com um interesse amoroso inexpressivo para Scout, o melhor personagem acaba sendo o tio Jack Finch, médico e excêntrico. Ele, entretanto, tem uma atitude pra lá de questionável no finalzinho do livro, que diminui nossa simpatia para com o personagem.

Pode ser dito que, em “O Sol é Para Todos”, temos a visão idealizada de uma criança sobre seu pai, enquanto em “Vá, Coloque um Vigia”, é a visão de uma adulta que nos é apresentada, e Atticus assim se torna uma figura humana, com defeitos e controvérsias. Mas as controvérsias superam e muito as qualidades de Atticus, pois ele chega inclusive a insinuar que negros não deveriam ter direitos porque não saberiam usufruir deles corretamente - no caso, ele diz que seria uma lástima a vitória de um candidato apoiado pelos negros, pois este não saberia governar.

É decepcionante ler que é preciso ter paciência com os intolerantes, que é quando eles estão errados que seus amigos mais precisam de você. Harper Lee não contava com a carga para a saúde mental que essa bondade toda é capaz de gerar. Incomoda principalmente quando Jean Louise chega à conclusão de que “os outros” (preconceituosos) são necessários para o equilíbrio social, e que não é possível vencê-los, nem juntar-se a eles. Com esses “outros”, não há diálogo, e não há convivência: separar-se deles nos dá uma paz de espírito que não tem preço.

Na época da publicação de “Vá, Coloque um Vigia”, foi levantada a suspeita de que Harper Lee, de idade bem avançada e bastante doente, havia sido coagida ou mesmo enganada para que aceitasse publicar este livro que tem mais cara de primeiro rascunho de “O Sol é Para Todos”. Essa hipótese aventada nunca foi provada, mas a verdade é essa: “Vá, Coloque um Vigia” é uma obra falha, menor e que causou bastante raiva - mas bons debates - no nosso clube do livro.

O VEREDICTO: 2 MINIONS!


REGULAR

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