Dando uma segunda chance para Jorge Amado

 


Meu primeiro contato com a obra de Jorge Amado não foi das melhores. Evitemos eufemismos: foi péssima. Aos catorze anos, tive de ler “Capitães da Areia” para a escola. Ainda me lembro do dia, estava esperando os cabelos molhados secarem enquanto lia, em que passei horrorizada os olhos pelas páginas que narravam o estupro da menina Dora por Pedro Bala e depois nos pediam para torcer por aquele “casal”. Abandonei a leitura, coisa que raramente faço, enojada.

Ao ver um dos alunos com “Capitães da Areia” em sala de aula, nosso professor de história - o melhor professor que eu já tive - comentou que havia um livro engraçado da autoria de Jorge Amado: “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”. Guardei o nome na memória e resolvi recorrer a esta obra agora para tentar retirar minha má impressão.

Na pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Instituto Pró-Livro e Itaú Cultural em 2020, Jorge Amado foi o quinto autor preferido dos brasileiros. É também o autor brasileiro mais adaptado para o cinema, teatro e televisão. Tanta gente assim não podia estar errada. Talvez a errada fosse eu, ou apenas comecei mal minha relação com este escritor tão reverenciado. Foi minha visita à sua cidade de residência, Ilhéus, que me motivou a dar uma segunda chance a Jorge Amado.


Lendo outras obras


Vinicius de Moraes definiu Quincas Berro D’Água como “um cume que todos os escritores jovens devem ter em mira numa sadia inveja e num saudável desejo de ultrapassá-lo”. O livro conta basicamente os fatos que se seguiram à morte do boêmio Quincas Berro D’Água. Seus parentes, há anos sem contato com ele, querem dar a Joaquim Soares da Cunha uma despedida digna, e para isso compram roupas novas para enterrá-lo e se revezam na vigília. Eles não contavam com os quatro grandes amigos de bebedeira de Quincas, que o chamavam de paizinho - Cabo Martim, Curió, Pé-de-Vento e Negro Pastinha - e que se dispõem a passar a noite com o defunto. Eles levam Quincas então para uma despedida em grande estilo.


“Tocaia Grande” é a história de um povoado que depois daria origem à cidade de Irisópolis na zona cacaueira da Bahia. Começando com o ataque de jagunços que deu nome à localidade, acompanhamos os moradores do local em bons e maus momentos, das festas à enchente e à peste.

O principal personagem é o capitão Natário da Fonseca, líder dos jagunços e pau-mandado do barão Boaventura Andrade. A ele se juntam Fadul Abdala, comerciante árabe, que havia vindo ainda rapaz “do país das tâmaras para as terras do cacau”; Castor ‘Tição’ Abduim da Assunção, negro ferreiro devoto dos orixás, e as muitas raparigas do local, incluindo Bernarda, afilhada e xodó de Natário, e Jacinta Coroca, que na localidade, além de prostituta, descobre-se também parteira.

Há pérolas de sabedoria, destacando-se esta: “assunto mais traiçoeiro do que a política só mesmo a justiça. Por isso andam sempre juntas, de mãos dadas”. Entretanto, há também trechos problemáticos de “Tocaia Grande”, por exemplo: o Barão Boaventura Andrade chama os negros de animais, algo que numa edição mais moderna viria com uma nota de rodapé explicando o contexto.

Falemos então do contexto: nunca fica clara a época em que se passa o livro, mas crê-se que seja no começo do século XX. A Era de Ouro do cacau, com seus respectivos coronéis, durou até 1989, quando a praga da vassoura-de-bruxa arrasou as plantações de cacau na Bahia.

“Tocaia Grande” foi o livro que me ensinou alguns sinônimos para o órgão sexual masculino, como estrovenga, e para o feminino, tal qual xibiu. Sobre Dalila, uma passagem de tom engraçado: “a rapariga desaparecera, certamente em busca de paisagens menos adversas onde pudesse rebolar em paz o cobiçado fiofó”. Foi este tom cômico, além do final inesperado, que me fizeram gostar mais de “Tocaia Grande” do que das outras obras de Jorge Amado.

Visitando Jorginho

Finalmente, depois de lidas as duas obras, chegou a hora de pegar o voo para Ilhéus e ir conhecer os lugares por onde Jorge Amado passou e também locais que o inspiraram.

Jorge Amado (1912-2001) nasceu em Itabuna, mas foi para Ilhéus ainda criança, quando seu pai perdeu tudo numa inundação. A sorte sorriu para a família quando o pai do futuro escritor ganhou na loteria e se tornou coronel dono de lavouras de cacau. Jorge publicou o primeiro romance aos 19 anos, quando era estudante de Direito no Rio de Janeiro, profissão que jamais exerceu. Ao longo da longa vida, publicou 49 obras.

Jorge não era, no entanto, completamente original em suas criações. Muitos dos personagens e situações retratados em suas obras foram inspirados em figuras e locais que conheceu ao longo da vida. Em Ilhéus, foi possível conhecer o Bar Vesúvio, propriedade do turco Nacib e onde trabalhava a mulher que inspirou Gabriela, e o Bataclan, da lasciva Ambrozina Buzú, que foi inspiração para a personagem Maria Machadão.

Na Casa de Jorge Amado, encontramos um pedaço de concreto em que ele fez a forma de sua mão direita. Garantiu que quem colocasse a mão sobre a impressão da mão dele ou ganharia na loteria - como seu pai fez - ou seria um grande escritor - como ele fora. Coincidência ou não, coloquei minha mão sobre a impressão da mão do mestre, e uma semana depois tive ótimas notícias literárias!

Uma frase de “Tocaia Grande” define bem a obra de Jorge Amado: “não existe prazer igual, no mundo, ao de fornicar”. Ele escreve sobre situações hoje reprováveis com a naturalidade com que eram vistas na época. Faz exatamente isso: um retrato da sua época, no contexto dos coronéis do cacau. Merece ser cancelado por isso? Claro que não. Mas não há nada que algumas notas de rodapé não façam para acalmar nossos corações.

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